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Cantora de rua entre Paris e Berlim : "Nessa esquina até os guardas municipais dançaram"

Livia Lucas - Otubro 22
Cheguei com uma mala, uma mochila e muita sorte.. Um amigo me explicou tudo sobre Berlim, me deu as boas vindas, um mapa e uma bicicleta. Mais que suficiente. Nesse edifício onde agora eu moro, moram mais 25 pessoas e a coisa funciona. O coletivo é gerido pelos moradores, 80% de origem germânica.

Há alguns meses atrás decidi aventurar-me em uma nova e desafiadora experiência. Diante de uma pequena crise, de uma oportunidade repentina e voraz, causada por circunstâncias que fugiam ao meu controle, me vi sem porto onde ancorar, e fechei um ciclo de 7 anos de vida bem vivida em Barcelona.
Fui convidada por mim mesma, e tentada pela incertidão, a novamente começar do zero. Digo novamente pois não é a primeira vez que isso me acontece. 
Bom... Como ja não tinha laços fortes que me atassem à minha estimada Barcelona, resolvi sair por aí cantando pelas ruas. Coisa que eu nunca fiz na minha trajetória como cantora.
No princípio pensei em passar por diferentes países. E com otimismo e euforia, pensei que fosse possível dar um "giro" cantando pelas calçadas da europa. Porém meu bolso, bem mais realista que eu, me disse: "calma lá minha filha". E meu coração começou a repetir incansavelmente a mesma palavra, como um mantra, como se uma seta certeira indicasse meu próximo paradeiro. 
Berlim, Berlim, Berlim… 


E porque Berlim?! Sinceramente não sei e até hoje não encontrei nenhuma resposta muito lógica pra essa escolha.

Primeiro pela ausência total de contatos ou conhecidos na cidade, segundo pelo idioma que é uma grande barreira, tratando-se da lingua alemã, que não se fala em 6 meses nem a pau!
Mas algo naquela cidade por mim desconhecida me atraía fatalmente.
E seguindo a seta insólita da minha intuição comprei uma passagem só de ida, mandei fazer 100 discos, e gravei com o meu querido Pedro João as bases de violão que me acompanhariam pelas ruas.
Saí de Barcelona com todas as baterias recarregadas para enfrentar o desconhecido e mergulhar de cabeça na nova fase.
Cheguei com uma mala, uma mochila e muita sorte. Muito bem recebida por um personagem adorável, recomendação de uma amiga também adorável. Ele me explicou tudo sobre Berlim, me deu as boas vindas, um mapa e uma bicicleta. Mais que suficiente para alguém que acaba de pisar numa cidade grande.
Nesse edifício onde agora eu moro, moram mais 25 pessoas e a coisa funciona. O coletivo é gerido pelos moradores, 80% de origem germânica e por isso a coisa funciona.
Uma semana depois de chegar já conhecia boa parte dos moradores e já me sentia em casa. Na mesma semana explorei Berlim em bicicleta, comprei meu pequeno amplificador, visitei o Mauer Park e cantei no karaokê mais famoso daqui, e o mais cômico e populoso que eu já vi (umas 800 pessoas), depois cantei com o grupo de chorinho e foi uma delícia. 
Apesar da solidão (voluntária), dos passeios em minha companhia, eu me sinto muito bem.
Berlim é leve, tem muitos parques, ruas largas, arte por todos os lados. Berlim tem uma intensa e variada vida noturna, tem galerias aos montes, tem som nas ruas e nos bares.

Berlim é feita pra andar de bicicleta. Berlim é imperfeita, é envolvente, arborizada. É cabeça aberta, é cosmopolita, e é solitária. À noite as ruas são bem escuras, e a solidão abraça as calçadas.

No sábado seguinte à minha chegada comecei a saga pelas ruas. A primeira vez é sempre a mais tensa, porém me sentia encorajada apesar da tensão. Me adornei como uma ave exótica, e lá fui eu para uma feira popular soltar o gogó.
Sinceramente as pessoas não entenderam muito bem o que eu estava fazendo. Eu canto com um pequeno amplificador, sem microfone, e as canções são desconhecidas, música autoral. O samba jazz não é nada familiar por aqui. Porém de vez em quando passa alguém atento. Atento o suficiente para mudar meu dia e meu estado de espírito. É difícil sorrir pra ninguém durante 20 minutos, é foda manter a boa vibra e o otimismo quando não há resposta. Mas assim funciona na rua.
Alguns dias são mágicos, como por exemplo quando eu encontrei uma simpática sorveteria, num bairro que uma amiga (com considerável experiência cantando pelas ruas de Berlim) me havia recomendado. Nessa tarde eu cantei durante 1 hora para um público infantil realmente interessado e conectado, e obviamente, para os pais, mais que contentes com a alegria dos filhos. Minha caixinha de moedas cantou como eu naquela tarde. Recebi aplausos regados a olhares e sorrisos sinceros.

Tem dias em que alguém me aperta a mão e me olha com uma gratidão capaz de  transformar completamente o meu humor, e faz com que eu entenda a missão de fazer música.
Outro dia uma mulher me abraçou e não quis me soltar, e nem eu queria que ela soltasse.

Na mesma tarde uma menina convenceu o pai a comprar um disco, tamanha era sua euforia. Ela dançava e saltava e não queria ir embora, nem eu queria que ela fosse.
As vezes eu acho a "minha rua", a rua onde eu faço sucesso. Onde as pessoas param pra me ver, onde as crianças dançam ou se sentam à minha frente para assistir o "show", onde os olhares são doces, onde existe uma troca intensa com as pessoas. E essa rua pode não ser tão interessante no dia seguinte, pois as ruas são feitas pelas pessoas que passam por elas.
Tem dia que começa desanimado, e termina como começou. Volto sem muito entusiamo e sem moedas na caixinha. Outros dias começam mal, e eu me proponho a insistir um pouco mais. De repente minha sorte vira e as pessoas começam a perceber minha música.
Houve um episódio em que um senhor parou ao meu lado e permaneceu ali durante uns 40 minutos. Eu pensei que ele estivesse esperando alguém. Mas ele estava parado ali pra me ouvir. E nessa mesma tarde cada brasileiro que passava parava e me deixava uma moeda, muitos sorrisos e palavras de ânimo. Foi uma tarde especial, e especialmente patriótica.
Outros dias são "osso duro de roer", como por exemplo quando parei no meio de um dos pontos mais visitados de Berlim, o Brandembürger Tör.  Dei de cara com a indiferença, olhares hostis, reações hostís, e total falta de cuidado por parte de alguns turistas, muito preocupados em captar a paisagem com suas câmeras.
Muitos não percebem que os momentos são sempre mais bonitos do que as fotos que se ostenta depois. 
Nesse dia me senti ferida pela reação das pessoas. E em dias como esses, é óbivio que eu penso em deixar de cantar na rua. 
Nos dias em que se volta pra casa com a caixa vazia, o corpo e espirito cansados, é difícil renovar contrato consigo mesmo e tentar de novo.
Porém, um impulso desconhecido me empurra outra vez pra rua... Me leva a dar voltas pra sentir os lugares, e me manda parar em um ponto, ligar o som e começar a cantar.

Depois de Berlim cantei em Paris, na Sacre Coeur (uma aparição express interrompida pela presença da polícia) e em duas esquinas mais, em bairros diferentes da cidade.

Na primeira delas, a Place des Abesses, recebi muito mais "sim" do que "não", recebi olhares atentos, aplausos, moedas, o feed back das crianças (o melhor público do mundo) e dos adultos. Nessa esquina até os guardas municipais dançaram. Na outra parte da cidade, Rue de Passy, num bairro mais "chic", não houve tanta alegria. Cada um na sua mesa, num restaurante bem grande. Eu já percebi que seria difícil chamar a atenção, então extendi meu pano no chão sorrindo, à procura de um sorriso, e uma moça me sorriu. Essa moça seguiu a música, dialogou com as minhas emoções à distância, e me recompensou generosamente. Poucas das pessoas que estavam ali apreciaram o que eu cantava. E mesmo sem tanta resposta, aquela troca já valeu a pena.

É natural que em meio a tanto ruído, tanta informação e tantos mundos individuais, eu passe invisível para dezenas de pessoas. Entretanto, se uma dessas pessoas se envolve e se deixa tocar pela arte, todas as pequenas frustrações deixam de existir rapidamente, toda indiferença se vai, e dá lugar à diferença. Essa troca é inestimável!

Na minha experiência pessoal,

durante esse primeiro mês cantando pelas ruas, a musica urbana me serviu como um exercício de superação.

Superação de timidez (ainda que não pareça eu também tenho), superação de obstáculos, de negatividades, de medos (principalmente do medo ao ridículo). Serve também para pisotear o ego de artista. Ainda não sei se isso é bom ou ruim, ou se isso é realmente necessário. O fato é que eu senti meu ego pisoteado em diversas ocasiões, e querendo ou não se aprende muito com essa sensação desagradável. Pois o artista costuma se sentir muito importante, o que é normal diante dessa vida de aplausos e elogios. E no momento em que minha importância desaparece ou se esvai pouco a pouco pelo primeiro ralo da calçada, dói um bocado! Me sinto mais vulnerável, muito humana e bem realista.
É uma experiência que me arranca da zona de conforto e me confronta com um mundo e um público totalmente novo e imprevisível. Com dias de alegria e satisfação, dias de surpresa ou decepção.
A rua me ensina a "invadir" o espaço do outro, sem que se espere ou peça, ensina a chamar a atenção de quem tem uma rotina programada, a captar as emoções e mudar o dia das pessoas, a perceber que aquele intercâmbio de olhares e sorrisos também mudou meu dia, a não permitir que o mal humor de outros me afete. A rua ensina a improvisar, e dar mais que receber, num espaço que é de todos e de ninguém, onde a impermanência é a dona da batuta.

Livia Lucas (Berlim)


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